A melhor maneira de
falar sobre a realidade é vivendo-a
Relato sobre ocupação
de terra
MTD – Movimento dos
Trabalhadores Desempregados
Laysa de Gouveia –
Lalay.
Certamente as pessoas que passavam pela BR naquela madrugada, não entendiam
nada do que estava acontecendo. A luta popular se encontrava ali, travando mais
uma batalha, rumo à vitória.
Tudo se inicia às 10 horas da noite de sábado, 2 de outubro, quando
saio de casa em destino ao assentamento Zumbi dos Palmares, tendo firme em
cabeça que naquela noite iria vivenciar uma grande experiência em minha vida,
tendo a oportunidade de colocar em prática algumas de minhas teorias pregadas
sobre “a luta popular”. Chegando ao destino conheço pessoas simpáticas, com
quem logo me envolvo com conversas e risos. Negão (um dos assentados) nos dá
alguns informes de como será a noite e então esperamos o cair da madrugada
entre partidas de dominó.
Chegada a madrugada, juntamente
com ela o frio de aproximadamente 16º. Caminhamos todos em direção ao
Acampamento Santos Dias para nos juntar aos outros companheiros de luta. Para
clarear a mente dos leitores: o termo “assentamento” se dá quando à emissão de
posse e as famílias passam a ter seus lotes. Já o termo “acampamento” designa a
fase em que as famílias se encontram ainda na beira da pista, em seus barracos,
aguardando a desapropriação das terras.
Tudo pronto, partimos BR adentro
rumo a “terra prometida”. Vale ressaltar o quão lindo estava o céu naquela
noite, totalmente coberto pelas estrelas. As pessoas que ali estavam traziam
consigo muitas histórias, que eu ouvia conforme andava entre elas. Histórias
como a de uma senhora, que a 7 anos se encontra acampada no Acampamento Simões
Filho, e veio de lá juntamente com outros companheiros para ajudar-nos no
processo inicial. Relatos de batalhas, fé e esperança de que aquela terra seja
finalmente sua por direito. Todos os presentes traziam ali força de vontade, dedicação
e disposição sem igual, afinal, na luta do povo ninguém se cansa.
No caminho era solicitado silêncio, em prol do sigilo, mas os jovens
não davam sossego. Terra a vista! O momento do corte da cerca chegou a me
emocionar, ainda custava a acreditar que estava tendo a oportunidade de estar
ali, em um momento tão importante quanto este. Terra a dentro, desbravamos
entre o desconhecido para reconhecimento do local. Tarefas foram divididas e o
levante dos barracos começou a ser realizado. Vinha a minha cabeça muitas vezes
a marginalização da mulher quando usado o termo “sexo frágil”. Ali todos eram
guerreiros, fortes, de luta, em completa sintonia e igualdade. Homens e
mulheres misturavam-se nas tarefas entre preparo do almoço e levante do
barracão principal. Eu particularmente passei a manhã toda catando feijões e
interagindo com os companheiros, no intuito de reconhecimento de suas
realidades.
Onde está o povo brasileiro, tem sorriso no rosto. Animação também
não faltava em nenhum segundo naquele lugar. Em alguns momentos montava-se uma
banda improvisada, com direito a coral de criancinhas. Assim que a sanfona
tocava, os sorrisos e danças espalhavam-se sobre o acampamento, das mais
variadas formas. “Vocês são sem terra, mas não são sem esperança, sem coragem,
sem fervor revolucionário (...)” – Frei Betto.
Entre tantos pensamentos que me
“perturbavam” sobre todo aquele dia, imaginava o que seria daquelas pessoas se
não estivessem ali, qual seria a realidade reservada para eles. Estariam com
certeza sujeitos a trabalhos quase em condições escravas e de baixo salário,
dependendo dele para pagar aluguel e sustentar toda uma família, enquanto
aquela terra estaria sendo inutilizada, desperdiçada. As crianças, que passaram
o dia em completa diversão, correndo entre os espaços, talvez estivessem
entregues ao tráfico, à marginalização. Entre todas as indagações que fazia a
mim mesma em pensamento, entendia por que eles estavam ali, porque aquelas
terras pertencem a eles e os
direitos que tem sobre elas.
Talvez a parte mais difícil do
dia tenha sido a ida ao “banheiro” que de fato não existia. As mãos que
permaneceram sujas me traziam um orgulho profundo. Medo só me bateu em um
momento, quando foi encontrada uma cobra. Medo pela vida dos meus companheiros.
Imaginava se não apareceriam ali outros insetos que os atacassem antes de serem
vistos. A grande cobra venenosa não saiu dos meus pensamentos até agora. O almoço realizado num fogão rústico feito
ali mesmo com a casa dos cupins estava verdadeiramente delicioso, organizados
em filas esperávamos a serventia nos pratos, que depois foram lavados com a
água de um cano estourado frente a pista, e foi nesse ritual de almoço familiar
que me despedi dos companheiros até o próximo encontro. Em momento algum eu
desejei estar em qualquer outro lugar se não ali.
Após aquele dia de convívio, no caminho para casa me vinha às relatorias
do senso comum, dotadas de preconceitos sobre as ocupações realizadas pelos sem
terra. E digo OCUPAÇÕES e não INVASÕES, como são relatadas na grande mídia. Quantas
dessas pessoas passaram pelo menos um dia sequer ao lado deles? Quantos tiveram
o mínimo desejo de conhecimento de suas realidades antes de sair formulando
idéias dotadas de falsidades? Quantos pegaram nas enxadas, capinaram os campos,
cortaram as madeiras, amarraram as lonas? É realmente necessário que todos
reavaliem o que andam lendo por aí, reproduzindo por aí, principalmente o que
parte de um burguesia que pouco se preocupa com as lutas populares e só
fomentam o desejo exacerbado pelo lucro, através da exploração dessas pessoas.
Se a grande riqueza brasileira fosse dividida de forma igual, terras não
precisariam ser ocupadas, pessoas não precisariam viver em baixo de lonas
pretas, sujeitas a chuva, ao frio, insetos, em condições miseráveis. E ainda
reproduzem por aí que os ocupadores são os vilões... Há séculos a burguesia está
invadindo o nosso direito a vida, nos deixando não só sem teto, mas sem
alimento, segurança, educação, trabalho, saúde, enfim... Sem vida digna.